quinta-feira, 5 de abril de 2012

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Neste meu primeiro post, achei interessante colocar uma imagem apropriada à ocasião, e dentre muitas possibilidades, escolhi a palavra 始め (hajime, “início”), que só tem um kanji. Entretanto, ralei um pouco para desenhá-lo, pois essa letra 始 (haji-meru, haji-maru; shi) possui um dos radicais que considero mais difíceis, o onnahen, cuja origem é o kanji que significa “mulher” (女, onna, às vezes grafado como on'na, pois é lido com a sílaba “on” seguida de “na”, e não “ona”). Como todos os radicais sufixados em -hen, o onnahen fica postado à esquerda do kanji, ocupando completamente esse lado. Já à direita de 始 temos outro kanji, o 台 (utena; dai, tai), cuja ideia geral é “suporte”, como em “pedestal”, e por isso nomeia o cálice da flor (utena). Mas seu uso mais comum mesmo é como contador de máquinas e veículos (dai, como em “um carro”: 車の1台, kuruma no ichidai).


Sim, eu também preciso forçar muito a imaginação para criar um vínculo entre uma ideia e outra. Quem estuda japonês ou kanji logo entende que essas correlações aparentemente absurdas ocorrem com certa frequência. Porém, lembremos que os kanji passaram por muitas variações pelas eras, e foram adaptados e readaptados também de muitas maneiras, de forma que a conexão entre seus sentidos pode estar soterrada nessa longa história. E isso se supusermos que utena e dai/tai tivessem compartilhado originalmente o mesmo kanji, o que não necessariamente ocorreu. Pode ser que, no início do desenvolvimento da linguagem escrita, essas palavras tenham sido associadas a kanji diferentes. Como passaram por diversas transformações, existe a possibilidade de que com o decorrer do tempo, a estilização desses ideogramas tenha resultado na mesma grafia que atualmente é 台, mas ainda que a grafia das palavras tenha se unificado, isso não aconteceu com seus significados, que permaneceram assim distintos. Pois é, esse tipo de coisa pode acontecer. Aliás, o próprio onnahen não me parece algo muito intuitivo na ideia de “começar”, e como o dicionário oferece pelo menos mais duas variações de 始 em que o onnahen não aparece, também esse radical parece ter sido fruto de uma transformação posterior. Até porque, convenhamos: no que "mulher" + "suporte" ou "contagem para máquinas" sugere a ideia de "início", né?

De qualquer forma, não sei a explicação para esse caso, nem para a aparente polissemia de 台. O que posso dizer a mais desse 台 é que os dicionários dão conta que ele próprio é um kanji composto de mais dois radicais, ム (mu) e 口 (kuchi; ku, kou). ム sozinho não constitui nenhum kanji, embora seja um caractere homófono do katakana. Enquanto radical, sua ideia é de “eu” ou “meu”, “a meu respeito”. Kuchi, por sua vez, além de radical é também um kanji que significa boca. Talvez 台 pudesse então ser “sustentação” num sentido figurado, como a boca que pela eloquência defende o falante? Espero um dia poder aprender o que os arqueólogos e filólogos dizem a respeito.

Mas voltando ao 始, vale lembrar que ele pode nos dar dois verbos, haji-meru (始める) e haji-maru (始まる), ambos significando “começar”, mas com uma sutil diferença sintática. O primeiro é o que normalmente podemos chamar em português de verbo transitivo, pois é algo que um sujeito começa. Não é simplesmente “começar”, mas sim “começar alguma coisa” (precisa, portanto, de um objeto). Já o segundo verbo é intransitivo, independe de objeto, e é algo que se inicia por si, sem a ocorrência de um sujeito e um objeto. Exemplo esclarecedor:

“O professor começou a aula” (先生は授業を始めました, sensei wa jugyou wo hajimemashita). 
“A aula começou” (授業が始まりました, jugyou ga hajimarimashita).

No primeiro caso, podemos ver o uso das partículas は (que nesse caso não é lida como “ha” e sim “wa”) e を (que também neste caso não se lê “wo”, mas “o”) esclarecendo sujeito e objeto. No segundo caso, apenas a partícula が (ga) aparece para determinar o sujeito que não precisa de objeto.

Quem diria que um simples ideograma pudesse render tanto assunto. De fato, é muita coisa para se estudar; e isso porque nem tratei da parte estética ou técnica da peça de shodô, nem fiz qualquer reflexão um pouco menos superficial. Mas tudo bem; shodô tem essa qualidade especial, enfraquecida nos idiomas romanizados, de combinar arte e linguagem de forma praticamente mágica. Não poderia deixar de tratar algum ponto sobre o idioma em si, até porque isso é conveniente para quem, como eu, estuda japonês também. De qualquer forma, acho que devagar e com calma assim temos um bom começo.

Só gostaria de ter feito melhor a data e assinatura no lado esquerdo… mas, como já disse, foi suficientemente difícil conseguir um hajime minimamente aceitável (ainda há vários erros), e não quis assim descartá-lo por conta desse deslize. Serve de lição para considerar na próxima vez.

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